sexta-feira, 15 de outubro de 2010
Ciclo
I
Descansam os ossos sobre a areia quente,
Zumbe um vento terrível
Perpassando, impaciente, a galharia,
Teu hálito pútrido rodeia as flores doces,
E me repugna.
Atávicas as forças que brotam das minhas entranhas,
Em hostil silêncio e pertinaz resistência
Se negam
E se recusam.
Em torno o mundo se fez ressecado e triste
II
Das profundezas da noite escura
Surgem as ínfimas sobras, de azuis cerúleos.
E um círculo mágico flutua e dança livre,
Num cosmo sem limites
Núcleo que ao girar vira catavento de prata,
Gera energia
E vai-se vida afora
I
Descansam os ossos sobre a areia quente,
Zumbe um vento terrível
Perpassando, impaciente, a galharia,
Teu hálito pútrido rodeia as flores doces,
E me repugna.
Atávicas as forças que brotam das minhas entranhas,
Em hostil silêncio e pertinaz resistência
Se negam
E se recusam.
Em torno o mundo se fez ressecado e triste
II
Das profundezas da noite escura
Surgem as ínfimas sobras, de azuis cerúleos.
E um círculo mágico flutua e dança livre,
Num cosmo sem limites
Núcleo que ao girar vira catavento de prata,
Gera energia
E vai-se vida afora
Um Conto
A Caixa de fotografias
Roberto evitava as fotografias. Olhar para elas significava reviver, ativar lembranças adormecidas, remexer no passado cuidadosamente guardado sob os véus do esquecimento.
Mas, desta vez não havia escolha. Não poderia mais se esquivar ao pedido do filho, com quase dezoito anos já, e que tantas vezes lhe pedira para ver as fotos dos avós, queria conhecer a sua história. A desculpa era sempre a mesma, ele argumentava não conhecer o paradeiro das fotos, dizia que estavam perdidas, e a verdade é que desde a morte de seu pai escondera de si mesmo a caixa , e ao redescobri-la poderia correr o risco de, uma vez mais, abrir a ferida .
Se em seu peito não identicava o lugar das lembranças recolhidas, na casa não tinha dúvidas quanto ao lugar onde guardara tal “tesouro”. Ainda assim , diante do filho, abriu as portas dos armários, puxou gavetas, revirou guardados, até que apareceu aquela enorme caixa de papelão, os cantos quebrados, a cor amarelecida pelo tempo. Quanto tempo mesmo? Uns trinta e tres ou quatro anos, ele tinha apenas dezessete então.
Sentado no tapete, ao lado de João, ao destampar a caixa, veio tudo. As imagens foram revelando outras caixas, abrindo portas fechadas, destrancando antigos sentimentos. Como cartas, as figuras conhecidas desfilaram em suas mãos, e ele foi identificando sua mãe em diversos momentos, seu pai lendo, seu pai na praia cercado de crianças, o irmão mais velho jogando bola, a irmãzinha, ora com tranças, ora de cabelinho curto, os poucos amigos da família, a fiel Zefa que tanto ajudara sua mãe, Ás, um fox terrier espertíssimo, o cachorro da família, muitas fotos dele mesmo, tão parecido com o pai. Cada uma trazia um pedaço do emaranhado de sentimentos que constituíra sua vida: ternura, alegria, entusiasmo, sustos, esperanças e dores.
Caíu em suas mãos o retrato da família: a mãe, o pai, a irmã caçula, o irmão mais velho e ele mesmo, numa tradicional pose para a posteridade. Através dele recontruiu sua memória e começou a narrativa de sua vida para o filho:
“ Lembro-me perfeitamente, com detalhes, do dia em que foi tirada esta fotografia. Era um domingo de Páscoa e acabávamos de voltar da missa, todos juntos, como era costume na família de meu pai, católicos praticantes. Era o ano de 1941 e nessa época morávamos em Porto Alegre. Só se falava em guerra, mas para nós, crianças, a vida corria normalmente, íamos à escola e nada de extraordinário acontecia em nossa rotina. Havíamos nos vestido com as melhores roupas porque o domingo de Páscoa era festejado com um almoço para nós e nossos avós paternos .
Esse xale rendado que minha mãe usava tinha sido de sua avó e vindo da Europa, mais precisamente da Hungria, junto com sua família, e era um dos poucos pertences salvos na emigração , em fins da década de 20. Além de belíssimo, de cor perolada e tecido que formava rosas agrupadas em círculos, tinha grande valor simbólico, era como trazer a antiga pátria perdida e sua cultura para o contato de sua pele.
Meu pai gostava dessa gravatinha borboleta e sempre a combinava com o cardigan axadrezado, presente de um amigo que fizera uma viagem a Buenos Aires. Ele reuniu a família no hall de entrada de nossa casa, um sobrado simples com um jardinzinho na frente, e pediu ao seu irmão Renato que batesse a foto. Fizemos pose, no último minuto fiquei bem envergonhado e olhei para baixo. Acho que nunca gostei de aparecer.
Como você pode ver, é a foto de uma família unida e feliz, e de fato é o que fomos durante um longo tempo. Os dois irmãos éramos solidários nas confusões e travessuras, nas aventuras adolescentes e mesmo na hora do castigo e da bronca. Na escola, Rogério era meu protetor e voava em cima dos meus desafetos. Com ele aprendi a fazer e soltar balões, a içar pipas contra céus magníficos, a procurar nas árvores a forquilha certa para construir o estilingue. Fomos companheiros inseparáveis até bem tarde, quando nossos temperamentos tão diferentes e nossos escolhas na vida nos separaram. Meu irmão sempre foi arrojado, valente, sociável, e desde cedo manifestou um grande talento para o comércio. Hoje é dono de uma cadeia de supermercados no sul, tem cinco filhos homens que desde cedo o ajudam no negócio, mas isso tudo você sabe, não faz um ano quie estivemos com seus primos em Porto Alegre.
Nossa irmãzinha foi mimada por todos e tornou-se uma jovem de beleza delicada, pele muito clara, olhos sonhadores, profundos, diria até sombrios. Não teve muita sorte na vida, aos dezessete anos teve episódios repetidos de febre com acessos de tosse e dificuldades respiratórias. Quando a tuberculose foi diagnosticada, ela foi internada numa clínica na serra, próximo a Caxias do Sul, mas infelizmente não resistiu e morreu, sem sequer ter vivido.
Nossa história, a de meu irmão e a minha, foi marcada por um grande drama familiar, e foi porisso , meu filho, que até hoje eu não conseguia conversar com você sobre o passado, essa mancha negra que me acompanhou sempre, acordado ou em forma de pesadelos quando eu durmo. Sabe, essa dolorosa memória, por outro lado alimentou minha imaginação de escritor e poeta e me permitiu acesso às mais recônditas áreas do inconsciente, o que para o meu trabalho foi fundamental.
Meu pai e minha mãe, Augusto e Ruth , amavam-se, nos primeiros anos de casamento, com ternura e paixão. Via-se em seus gestos, na entonação da voz e através da linguagem do corpo, como se queriam. Seu avô era um homem delicado de sentimentos, romântico e extremamente sonhador. Desde minhas primeiras lembranças posso enxergá-lo com um caderninho e a caneta tinteiro, a tomar nota dos acontecimentos , os de dentro e à sua volta. Tudo que ele desejava era poder publicar seus contos e romances, compartilhar com o leitor sua rica imaginação. Mas sua vontade nunca se realizou.
Ruth, sua mulher e minha mãe, jamais o permitiu. Era ela de família judia, imigrantes húngaros, como já disse, que deixaram a pátria entre guerras, por não terem mais lugar ou esperanças em sua terra. Mamãe era disciplinada, competente, excelente dona de casa e mãe infalível, e nunca mais pôde, depois que aqui chegou, imaginar a possibilidade de passar por dificuldades econômicas ou por situações de desconforto ou vulnerabilidade. Inflexível, ela lutou contra a vocação de seu marido e o obrigou a aceitar um cargo público burocrático, mesquinho, monótono e menor. No início, lembro-me ainda, papai lutou bravamente. Procurou redações de jornais, escreveu para editoras, fez o impossível, mas acabou sucumbindo e aceitando o alto preço da miserável segurança econômica da família. Não conseguiu mais ser feliz. Foi, aos poucos abandonando as coisas que amava, o sol, o mar e os filhos. Parece que estou vendo ele se acabrunhar e encolher pelos cantos, não se ouvia mais sua voz. Ao mesmo tempo, mamãe tornava-se mais despótica e obsecada com a idéia de poupar, construir um patrimônio. Ela mesma passou a costurar para fora, e, com a mente ocupada em suas tarefas, foi abandonando cada vez mais meu pai.
Crescemos com a tristeza de papai e a tirania de mamãe. Rogério e eu encontramos a alegria de viver nas ruas , na escola e nos botequins com os amigos. Quando minha irmã faleceu, nossa casa era um destroço e não queríamos estar em casa para testemunhar as sombras de dor nos olhos de ambos. Alguns meses depois, fui chamado na faculdade, onde me inscrevera no curso de Letras. Papai havia se enforcado. Mamãe, depois disso, perdeu o juízo e terminou seus dias numa clínica para doentes mentais. As poucas vezes que tive coragem de visitá-la, não me reconheceu.
Cheguei a São Paulo um ano após o término da faculdade. Sempre tive a certeza de que seria um escritor. Mas o que conquistei foi com muita luta , e a convicção de quem conhece seu caminho. Quando me mudei para esta casa, com sua mãe e você pequenino no meu colo, trouxe também a caixa de fotografias, e com ela, o meu passado. Já que chegou a hora da verdade, quero que fique com este caderninho com as belíssimas estórias de seu avô, com seu olhar amoroso em direção à vida e a esperança dos primeiros tempos. Construa com elas suas imagens artísticas, e não se esqueça da certeza do passo, sem pressa.
S. Paulo, 3 de fevereiro de 2002
Regina Dutra
Roberto evitava as fotografias. Olhar para elas significava reviver, ativar lembranças adormecidas, remexer no passado cuidadosamente guardado sob os véus do esquecimento.
Mas, desta vez não havia escolha. Não poderia mais se esquivar ao pedido do filho, com quase dezoito anos já, e que tantas vezes lhe pedira para ver as fotos dos avós, queria conhecer a sua história. A desculpa era sempre a mesma, ele argumentava não conhecer o paradeiro das fotos, dizia que estavam perdidas, e a verdade é que desde a morte de seu pai escondera de si mesmo a caixa , e ao redescobri-la poderia correr o risco de, uma vez mais, abrir a ferida .
Se em seu peito não identicava o lugar das lembranças recolhidas, na casa não tinha dúvidas quanto ao lugar onde guardara tal “tesouro”. Ainda assim , diante do filho, abriu as portas dos armários, puxou gavetas, revirou guardados, até que apareceu aquela enorme caixa de papelão, os cantos quebrados, a cor amarelecida pelo tempo. Quanto tempo mesmo? Uns trinta e tres ou quatro anos, ele tinha apenas dezessete então.
Sentado no tapete, ao lado de João, ao destampar a caixa, veio tudo. As imagens foram revelando outras caixas, abrindo portas fechadas, destrancando antigos sentimentos. Como cartas, as figuras conhecidas desfilaram em suas mãos, e ele foi identificando sua mãe em diversos momentos, seu pai lendo, seu pai na praia cercado de crianças, o irmão mais velho jogando bola, a irmãzinha, ora com tranças, ora de cabelinho curto, os poucos amigos da família, a fiel Zefa que tanto ajudara sua mãe, Ás, um fox terrier espertíssimo, o cachorro da família, muitas fotos dele mesmo, tão parecido com o pai. Cada uma trazia um pedaço do emaranhado de sentimentos que constituíra sua vida: ternura, alegria, entusiasmo, sustos, esperanças e dores.
Caíu em suas mãos o retrato da família: a mãe, o pai, a irmã caçula, o irmão mais velho e ele mesmo, numa tradicional pose para a posteridade. Através dele recontruiu sua memória e começou a narrativa de sua vida para o filho:
“ Lembro-me perfeitamente, com detalhes, do dia em que foi tirada esta fotografia. Era um domingo de Páscoa e acabávamos de voltar da missa, todos juntos, como era costume na família de meu pai, católicos praticantes. Era o ano de 1941 e nessa época morávamos em Porto Alegre. Só se falava em guerra, mas para nós, crianças, a vida corria normalmente, íamos à escola e nada de extraordinário acontecia em nossa rotina. Havíamos nos vestido com as melhores roupas porque o domingo de Páscoa era festejado com um almoço para nós e nossos avós paternos .
Esse xale rendado que minha mãe usava tinha sido de sua avó e vindo da Europa, mais precisamente da Hungria, junto com sua família, e era um dos poucos pertences salvos na emigração , em fins da década de 20. Além de belíssimo, de cor perolada e tecido que formava rosas agrupadas em círculos, tinha grande valor simbólico, era como trazer a antiga pátria perdida e sua cultura para o contato de sua pele.
Meu pai gostava dessa gravatinha borboleta e sempre a combinava com o cardigan axadrezado, presente de um amigo que fizera uma viagem a Buenos Aires. Ele reuniu a família no hall de entrada de nossa casa, um sobrado simples com um jardinzinho na frente, e pediu ao seu irmão Renato que batesse a foto. Fizemos pose, no último minuto fiquei bem envergonhado e olhei para baixo. Acho que nunca gostei de aparecer.
Como você pode ver, é a foto de uma família unida e feliz, e de fato é o que fomos durante um longo tempo. Os dois irmãos éramos solidários nas confusões e travessuras, nas aventuras adolescentes e mesmo na hora do castigo e da bronca. Na escola, Rogério era meu protetor e voava em cima dos meus desafetos. Com ele aprendi a fazer e soltar balões, a içar pipas contra céus magníficos, a procurar nas árvores a forquilha certa para construir o estilingue. Fomos companheiros inseparáveis até bem tarde, quando nossos temperamentos tão diferentes e nossos escolhas na vida nos separaram. Meu irmão sempre foi arrojado, valente, sociável, e desde cedo manifestou um grande talento para o comércio. Hoje é dono de uma cadeia de supermercados no sul, tem cinco filhos homens que desde cedo o ajudam no negócio, mas isso tudo você sabe, não faz um ano quie estivemos com seus primos em Porto Alegre.
Nossa irmãzinha foi mimada por todos e tornou-se uma jovem de beleza delicada, pele muito clara, olhos sonhadores, profundos, diria até sombrios. Não teve muita sorte na vida, aos dezessete anos teve episódios repetidos de febre com acessos de tosse e dificuldades respiratórias. Quando a tuberculose foi diagnosticada, ela foi internada numa clínica na serra, próximo a Caxias do Sul, mas infelizmente não resistiu e morreu, sem sequer ter vivido.
Nossa história, a de meu irmão e a minha, foi marcada por um grande drama familiar, e foi porisso , meu filho, que até hoje eu não conseguia conversar com você sobre o passado, essa mancha negra que me acompanhou sempre, acordado ou em forma de pesadelos quando eu durmo. Sabe, essa dolorosa memória, por outro lado alimentou minha imaginação de escritor e poeta e me permitiu acesso às mais recônditas áreas do inconsciente, o que para o meu trabalho foi fundamental.
Meu pai e minha mãe, Augusto e Ruth , amavam-se, nos primeiros anos de casamento, com ternura e paixão. Via-se em seus gestos, na entonação da voz e através da linguagem do corpo, como se queriam. Seu avô era um homem delicado de sentimentos, romântico e extremamente sonhador. Desde minhas primeiras lembranças posso enxergá-lo com um caderninho e a caneta tinteiro, a tomar nota dos acontecimentos , os de dentro e à sua volta. Tudo que ele desejava era poder publicar seus contos e romances, compartilhar com o leitor sua rica imaginação. Mas sua vontade nunca se realizou.
Ruth, sua mulher e minha mãe, jamais o permitiu. Era ela de família judia, imigrantes húngaros, como já disse, que deixaram a pátria entre guerras, por não terem mais lugar ou esperanças em sua terra. Mamãe era disciplinada, competente, excelente dona de casa e mãe infalível, e nunca mais pôde, depois que aqui chegou, imaginar a possibilidade de passar por dificuldades econômicas ou por situações de desconforto ou vulnerabilidade. Inflexível, ela lutou contra a vocação de seu marido e o obrigou a aceitar um cargo público burocrático, mesquinho, monótono e menor. No início, lembro-me ainda, papai lutou bravamente. Procurou redações de jornais, escreveu para editoras, fez o impossível, mas acabou sucumbindo e aceitando o alto preço da miserável segurança econômica da família. Não conseguiu mais ser feliz. Foi, aos poucos abandonando as coisas que amava, o sol, o mar e os filhos. Parece que estou vendo ele se acabrunhar e encolher pelos cantos, não se ouvia mais sua voz. Ao mesmo tempo, mamãe tornava-se mais despótica e obsecada com a idéia de poupar, construir um patrimônio. Ela mesma passou a costurar para fora, e, com a mente ocupada em suas tarefas, foi abandonando cada vez mais meu pai.
Crescemos com a tristeza de papai e a tirania de mamãe. Rogério e eu encontramos a alegria de viver nas ruas , na escola e nos botequins com os amigos. Quando minha irmã faleceu, nossa casa era um destroço e não queríamos estar em casa para testemunhar as sombras de dor nos olhos de ambos. Alguns meses depois, fui chamado na faculdade, onde me inscrevera no curso de Letras. Papai havia se enforcado. Mamãe, depois disso, perdeu o juízo e terminou seus dias numa clínica para doentes mentais. As poucas vezes que tive coragem de visitá-la, não me reconheceu.
Cheguei a São Paulo um ano após o término da faculdade. Sempre tive a certeza de que seria um escritor. Mas o que conquistei foi com muita luta , e a convicção de quem conhece seu caminho. Quando me mudei para esta casa, com sua mãe e você pequenino no meu colo, trouxe também a caixa de fotografias, e com ela, o meu passado. Já que chegou a hora da verdade, quero que fique com este caderninho com as belíssimas estórias de seu avô, com seu olhar amoroso em direção à vida e a esperança dos primeiros tempos. Construa com elas suas imagens artísticas, e não se esqueça da certeza do passo, sem pressa.
S. Paulo, 3 de fevereiro de 2002
Regina Dutra
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