quarta-feira, 10 de março de 2010

Relato de Viagem
Sicília- primeira parte


Setembro de 1995


Estamos há quase uma semana na Sicília, esta ilha imensa, um outro país de gente italiana, mas cuja terra ocre e restos históricos me faz pensar na Magna Grécia. O território, separado da Calábria pelo estreito de Messina, foi domínio de inúmeras civilizações: fenícios, gregos, romanos, ostrogodos, árabes, etc. Imagino a seqüência de antigos habitantes, seu legado cultural presente na arte e ruínas da arquitetura grandiosa e magnífica.
Em Siracusa há uma tumba provável de Arquimedes, conhecido matemático e físico, que, um dia, ao tomar banho de banheira, descobriu uma lei física, ("Todo corpo mergulhado num fluido sofre, por parte do fluido, uma força vertical para cima, cuja intensidade é igual ao peso do fluido deslocado pelo corpo.") e, ensandecido, nu, saiu pelas ruas anunciando sua descoberta, gritando “Eureka,” a quem quisesse ouvir.
No enorme teatro grego da cidade já foram apresentadas peças de Ésquilo, Sófocles e Eurídice. Platão também teve importante papel em Siracusa, tendo aí estado aos 40 anos de idade ( 388/7 AC), e depois aos 60 e 68 anos, empenhado em difundir sua filosofia. (“O saber, gnosis ,não é para Platão mera contemplação desligada da vida, mas converte-se em tekhne, arte, e em phronesis, reflexão sobre overdadeiro caminho, a decisão acertada, a meta autêntica,
os bens reais.” W. Jaeger. Paideia).
Quando venho à Europa fico diante da verdade inquestionável de que a cultura humana é a somatória reveladora do pensar e do fazer humanos.
Encantam-me os sicilianos, gente simples, que fala um italiano cantado, a língua entre os dentes, chiando, e, às vezes, absolutamente ininteligível para nós. As pessoas são simpáticas, disponíveis, capazes de nos acompanhar por quilômetros para elucidar uma dúvida quanto ao caminho. Percebo, porém, que são bravos, invocados, e não estão abertos a brincadeiras, é preciso cuidado.
Fizemos hoje um passeio pelo rio Ciane, por entre papiros que cobrem de verdes tufos as margens do rio, e muitas vezes deitam-se sobre as águas O barqueiro falava muito rápido e sussurrando os esses, enquanto olhávamos e tentávamos entender alguma coisa. Era um rapaz de olhos azuis muito claros, e arregalados, um rosto expressivo, com ar quase histriônico. O passeio não foi grande coisa, mas os papiros e o sicilianos estimularam minha imaginação.
Os jornais, ontem, anunciaram a morte da mulher de um mafioso importantíssimo da Sicília: Santapaola Minitti. Como estavam presos o marido e dois filhos seus, acredita-se que foi morta para que não entregasse o que sabia, tentando, assim, salvar a pele da família. Esta é a facção da Catânia, a outra facção é de Palermo. Os mafiosos ainda hoje estão impunes, somam-se os crimes de “silêncio” e vingança.
A Sicília é uma região abençoada por Deus, com tantas belezas naturais, que jamais me cansaria de andar por estas terras, com o mar sempre na vizinhança. Para nós, brasileiros, de país tropical, que conhecemos os verdes em todas as nuanças, comovem os ocres, sépias e dourados que colorem a paisagem estranha, as oliveiras prateadas sob intenso sol, e os ciprestes retorcidos, de verdes muito escuros. O céu não tem nuvens, cobalto ou celeste, é claro, e a luz que se esparrama sobre a terra é deslumbrante, inunda de alegria nossos corações. Finalmente, o mar mediterrâneo em toda a volta, como diria Pirandello, o “mar africano’, ora turquesa, ora azurro.
A maravilhosa culinária siciliana, que as nonas italianas em S. Paulo, vêm perpetuando, incríveis “antipasti”, “melanzane” em todas as receitas, o perfume das ervas deliciosas, as frutas generosas, os “dolci” , tudo acompanhado dos vinhos escuros, densos, aveludados, mortalmente saborosos. ( Corvo, Regalealli, Donna Fugatta).
Penso no filme de Visconti, “Il Gattopardo”, de 1963, de Giuseppe Lampedusa, nascido em Palermo, em Pirandello, escritor e dramaturgo, nascido em Agrigento, a humanidade deve muito aos sicilianos.
Visitamos também Agrigento, na costa sul da Sicilia, e local da antiga cidade grega Akragas., uma das mais importantes da Magna Grécia. É conhecida como a cidade dos templos, pela enorme quantidade de monumentos históricos, gregos e romanos, pelos museus com riquíssima coleção de peças arqueológicas.
Luigi Pirandello nasceu em Agrigento em 1867, e hoje existe um museu em sua casa, conhecida pelo nome de Kaos. Situada num planalto, ocre como a cor do solo, arrebatada pelo vento ciclópico, cercada por um jardim de flores exuberantes, e debruçada sobre o mar Mediterrâneo, “o mar africano”, é um sobrado de dois andares, de grande simplicidade e bom gosto, como imaginaríamos a casa de um grande homem. Ali encontramos a beleza em seus móveis sóbrios, de madeira escura, seus livros, cartas, anotações. Lindo o piso da casa, inteiro em cerâmica azul e branca, fresco, como pede o clima. Mais lindo do que tudo, a vista da janela, virada para o mar e para o céu, para o impressionante cipreste, torturado pelo tempo e pelo vento. Neste local exato, Pirandello pediu que o enterrassem. A voz de seus escritos paira no ar, a casa é cheia de seus pensamentos, sua vida permanece na minuciosa escolha dos objetos que um dia o cercaram.
A visita à casa de Pirandello, sozinha, teria valido a viagem à Sicília.

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