sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Ciclo


I
Descansam os ossos sobre a areia quente,
Zumbe um vento terrível
Perpassando, impaciente, a galharia,
Teu hálito pútrido rodeia as flores doces,
E me repugna.


Atávicas as forças que brotam das minhas entranhas,
Em hostil silêncio e pertinaz resistência
Se negam
E se recusam.
Em torno o mundo se fez ressecado e triste


II
Das profundezas da noite escura
Surgem as ínfimas sobras, de azuis cerúleos.
E um círculo mágico flutua e dança livre,
Num cosmo sem limites
Núcleo que ao girar vira catavento de prata,
Gera energia
E vai-se vida afora

Um Conto

A Caixa de fotografias



Roberto evitava as fotografias. Olhar para elas significava reviver, ativar lembranças adormecidas, remexer no passado cuidadosamente guardado sob os véus do esquecimento.
Mas, desta vez não havia escolha. Não poderia mais se esquivar ao pedido do filho, com quase dezoito anos já, e que tantas vezes lhe pedira para ver as fotos dos avós, queria conhecer a sua história. A desculpa era sempre a mesma, ele argumentava não conhecer o paradeiro das fotos, dizia que estavam perdidas, e a verdade é que desde a morte de seu pai escondera de si mesmo a caixa , e ao redescobri-la poderia correr o risco de, uma vez mais, abrir a ferida .
Se em seu peito não identicava o lugar das lembranças recolhidas, na casa não tinha dúvidas quanto ao lugar onde guardara tal “tesouro”. Ainda assim , diante do filho, abriu as portas dos armários, puxou gavetas, revirou guardados, até que apareceu aquela enorme caixa de papelão, os cantos quebrados, a cor amarelecida pelo tempo. Quanto tempo mesmo? Uns trinta e tres ou quatro anos, ele tinha apenas dezessete então.
Sentado no tapete, ao lado de João, ao destampar a caixa, veio tudo. As imagens foram revelando outras caixas, abrindo portas fechadas, destrancando antigos sentimentos. Como cartas, as figuras conhecidas desfilaram em suas mãos, e ele foi identificando sua mãe em diversos momentos, seu pai lendo, seu pai na praia cercado de crianças, o irmão mais velho jogando bola, a irmãzinha, ora com tranças, ora de cabelinho curto, os poucos amigos da família, a fiel Zefa que tanto ajudara sua mãe, Ás, um fox terrier espertíssimo, o cachorro da família, muitas fotos dele mesmo, tão parecido com o pai. Cada uma trazia um pedaço do emaranhado de sentimentos que constituíra sua vida: ternura, alegria, entusiasmo, sustos, esperanças e dores.
Caíu em suas mãos o retrato da família: a mãe, o pai, a irmã caçula, o irmão mais velho e ele mesmo, numa tradicional pose para a posteridade. Através dele recontruiu sua memória e começou a narrativa de sua vida para o filho:


“ Lembro-me perfeitamente, com detalhes, do dia em que foi tirada esta fotografia. Era um domingo de Páscoa e acabávamos de voltar da missa, todos juntos, como era costume na família de meu pai, católicos praticantes. Era o ano de 1941 e nessa época morávamos em Porto Alegre. Só se falava em guerra, mas para nós, crianças, a vida corria normalmente, íamos à escola e nada de extraordinário acontecia em nossa rotina. Havíamos nos vestido com as melhores roupas porque o domingo de Páscoa era festejado com um almoço para nós e nossos avós paternos .
Esse xale rendado que minha mãe usava tinha sido de sua avó e vindo da Europa, mais precisamente da Hungria, junto com sua família, e era um dos poucos pertences salvos na emigração , em fins da década de 20. Além de belíssimo, de cor perolada e tecido que formava rosas agrupadas em círculos, tinha grande valor simbólico, era como trazer a antiga pátria perdida e sua cultura para o contato de sua pele.
Meu pai gostava dessa gravatinha borboleta e sempre a combinava com o cardigan axadrezado, presente de um amigo que fizera uma viagem a Buenos Aires. Ele reuniu a família no hall de entrada de nossa casa, um sobrado simples com um jardinzinho na frente, e pediu ao seu irmão Renato que batesse a foto. Fizemos pose, no último minuto fiquei bem envergonhado e olhei para baixo. Acho que nunca gostei de aparecer.
Como você pode ver, é a foto de uma família unida e feliz, e de fato é o que fomos durante um longo tempo. Os dois irmãos éramos solidários nas confusões e travessuras, nas aventuras adolescentes e mesmo na hora do castigo e da bronca. Na escola, Rogério era meu protetor e voava em cima dos meus desafetos. Com ele aprendi a fazer e soltar balões, a içar pipas contra céus magníficos, a procurar nas árvores a forquilha certa para construir o estilingue. Fomos companheiros inseparáveis até bem tarde, quando nossos temperamentos tão diferentes e nossos escolhas na vida nos separaram. Meu irmão sempre foi arrojado, valente, sociável, e desde cedo manifestou um grande talento para o comércio. Hoje é dono de uma cadeia de supermercados no sul, tem cinco filhos homens que desde cedo o ajudam no negócio, mas isso tudo você sabe, não faz um ano quie estivemos com seus primos em Porto Alegre.
Nossa irmãzinha foi mimada por todos e tornou-se uma jovem de beleza delicada, pele muito clara, olhos sonhadores, profundos, diria até sombrios. Não teve muita sorte na vida, aos dezessete anos teve episódios repetidos de febre com acessos de tosse e dificuldades respiratórias. Quando a tuberculose foi diagnosticada, ela foi internada numa clínica na serra, próximo a Caxias do Sul, mas infelizmente não resistiu e morreu, sem sequer ter vivido.
Nossa história, a de meu irmão e a minha, foi marcada por um grande drama familiar, e foi porisso , meu filho, que até hoje eu não conseguia conversar com você sobre o passado, essa mancha negra que me acompanhou sempre, acordado ou em forma de pesadelos quando eu durmo. Sabe, essa dolorosa memória, por outro lado alimentou minha imaginação de escritor e poeta e me permitiu acesso às mais recônditas áreas do inconsciente, o que para o meu trabalho foi fundamental.
Meu pai e minha mãe, Augusto e Ruth , amavam-se, nos primeiros anos de casamento, com ternura e paixão. Via-se em seus gestos, na entonação da voz e através da linguagem do corpo, como se queriam. Seu avô era um homem delicado de sentimentos, romântico e extremamente sonhador. Desde minhas primeiras lembranças posso enxergá-lo com um caderninho e a caneta tinteiro, a tomar nota dos acontecimentos , os de dentro e à sua volta. Tudo que ele desejava era poder publicar seus contos e romances, compartilhar com o leitor sua rica imaginação. Mas sua vontade nunca se realizou.
Ruth, sua mulher e minha mãe, jamais o permitiu. Era ela de família judia, imigrantes húngaros, como já disse, que deixaram a pátria entre guerras, por não terem mais lugar ou esperanças em sua terra. Mamãe era disciplinada, competente, excelente dona de casa e mãe infalível, e nunca mais pôde, depois que aqui chegou, imaginar a possibilidade de passar por dificuldades econômicas ou por situações de desconforto ou vulnerabilidade. Inflexível, ela lutou contra a vocação de seu marido e o obrigou a aceitar um cargo público burocrático, mesquinho, monótono e menor. No início, lembro-me ainda, papai lutou bravamente. Procurou redações de jornais, escreveu para editoras, fez o impossível, mas acabou sucumbindo e aceitando o alto preço da miserável segurança econômica da família. Não conseguiu mais ser feliz. Foi, aos poucos abandonando as coisas que amava, o sol, o mar e os filhos. Parece que estou vendo ele se acabrunhar e encolher pelos cantos, não se ouvia mais sua voz. Ao mesmo tempo, mamãe tornava-se mais despótica e obsecada com a idéia de poupar, construir um patrimônio. Ela mesma passou a costurar para fora, e, com a mente ocupada em suas tarefas, foi abandonando cada vez mais meu pai.
Crescemos com a tristeza de papai e a tirania de mamãe. Rogério e eu encontramos a alegria de viver nas ruas , na escola e nos botequins com os amigos. Quando minha irmã faleceu, nossa casa era um destroço e não queríamos estar em casa para testemunhar as sombras de dor nos olhos de ambos. Alguns meses depois, fui chamado na faculdade, onde me inscrevera no curso de Letras. Papai havia se enforcado. Mamãe, depois disso, perdeu o juízo e terminou seus dias numa clínica para doentes mentais. As poucas vezes que tive coragem de visitá-la, não me reconheceu.
Cheguei a São Paulo um ano após o término da faculdade. Sempre tive a certeza de que seria um escritor. Mas o que conquistei foi com muita luta , e a convicção de quem conhece seu caminho. Quando me mudei para esta casa, com sua mãe e você pequenino no meu colo, trouxe também a caixa de fotografias, e com ela, o meu passado. Já que chegou a hora da verdade, quero que fique com este caderninho com as belíssimas estórias de seu avô, com seu olhar amoroso em direção à vida e a esperança dos primeiros tempos. Construa com elas suas imagens artísticas, e não se esqueça da certeza do passo, sem pressa.





S. Paulo, 3 de fevereiro de 2002

Regina Dutra

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

IMAGEM



Quero ser sépia
E desmaiar aos poucos,
Desvanecer-me
Misturar-me às fibras do papel antigo
Esgarçar-me em matéria
Apenas perecível
Não imagem
De sonhos e viagens
De idéias e esperanças
Só papel
Que lentamente volta à terra
E mais uma vez um dia
Uma árvore será
A alcançar os céus.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Eu e a Outra


No espaço da memória,
Esbarro com uma e com outra
Uma gosta de agir
A outra de contemplar.
Uma gosta de ficar
A outra de sair,
Uma sonha com o passado,
A outra se lança ao futuro.


Se uma abre os braços.
Voa com o vento,,
Acredita no gesto grande
E ocupa todo o espaço,
A outra se intimida
Se fecha , e busca dentro
O que necessita como alimento.


E com o tempo,
As duas, sem perceber, se unem.
Encontram no micro e no macrocosmo,
Inspiração e força.
E vão pela vida,
Aprendendo a ser e a viver
Dois tempos


Lembranças do parque e da praça
Acolhedora sombra
Pernas enlaçadas
Corpo vivo
Pele, carne, ossos
Entrevistos... Fachos de luz

Na casa o silêncio perfumado das frutas
Plantas, móveis, livros
Imóveis à espera,
A sonoridade de um bebê.

Que vida seria a minha,
Aquela, a outra que não vivi?

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

ENVELHECER


Sobre os ombros,
Os cabelos,
Minha face,
Desce, lentamente,
Um pouco cada dia,
Uma nuvenzinha branca,
Algodão do tempo.
Bruma de outono.


Perdem a nitidez, os contornos,
os traços do rosto,
As linhas do corpo.
O que era são, transforma-se:
Emaranhados e nós é o que resta
Aos nossos órgãos e ossos.
Ficam lentos os passos,
A ação dá lugar à contemplação


E turva-se o mundo,
Em sintonia
Com o calor que cresce,
Oriundo
Da refulgente chama interna.

Depois de um longo e tenebroso inverno...

BRANCO


Ocultos pelo intenso branco
Todas as cores,
As linhas que fiz e desfiz,
Os pensamentos que não se tornaram atos,
As palavras que não escrevi.


Revelados pelo branco
O esplendor de uma manhã de abril,
A renda desenhada pela espuma do mar,
Os rastros do tempo na areia.
A clareza de algumas idéias
A certeza do caminho percorrido.

domingo, 28 de março de 2010

sexta-feira, 12 de março de 2010

Vistas da Baía

Baía de Mondello e Monte Pelegrino I, II e III

Baía de Mondello e Monte Pelegrino

O Monte Pelegrino

A cidade de Palermo se estende a partir da baía de Mondello, tendo ao fundo o Monte Pelegrino. É a maior cidade da Sicília, e o resultado da passagem de muitos povos e culturas por seu território. Foram muitos os conquistadores e as culturas: fenícios, romanos, normandos, bizantinos, árabes, aragoneses. A mistura cultural está presente na arte e na arquitetura, num feliz entrelaçado de idéias de origens diversas. Restos de monumentos da Magna Grécia, catedrais normandas, uso de decoração mourisca com elementos geométricos ou azulejos, os mosaicos e dourados do período bizantino, um pouco de tudo compõe a face da cidade, determinada anteriormente pela situação geográfica privilegiada e pela invejável beleza natural.
Sabe-se que em 1787 Goethe esteve em Palermo e escreveu sobre a cidade e sobre o Monte Pelegrino, uma colina de 1970m de altura com vista privilegiada da baía e da cidade:


Palermo, 3 de Abril de 1787

“A Itália sem a Sicília não deixa marcas na alma: é aqui que está a chave de tudo”.
...a descrição desta baía incomparável e da sua enorme massa de água. Estende-se do lado nascente, onde montes mais baixos descem até ao mar, passando por muitos rochedos irregulares mas de bom aspecto, cobertos de floresta, até ás casas de pescadores dos arrabaldes, continuando depois pela própria cidade, cujas casas deste lado estão todas voltadas para o porto...

...depois, prolonga-se para poente, passando pelo ancoradouro onde acostam os barcos mais pequenos, até ao porto propriamente dito, no molhe, que acolhe os navios de maior porte. Aí ergue-se o poente, para proteger todas as embarcações , o Monte Pellegrino nas suas belas formas, depois de ter deixado entre si e na terra interior um ameno e fértil vale que se estende até à ponta do mar.»

(Goethe- vol 6 de Obras Escolhidas Relógio D’Água)



O Monte Pelegrino parece, à primeira vista, com suas arestas e cortes, obra de um escultor, feito a golpes de talhadeira.
No entanto, todas as partes irregulares e incompletas se aglutinam, constituindo uma unidade harmoniosa quando avistado de uma certa distância. É constituído de rochas, sobretudo calcáreas. Contam-se 134 grutas de origem marinha, de interesse geológico e pré-histórico. È recoberto de vegetação costeira complexa.
Cobre as rochas infindável número de cactos, que nesta época ( setembro) estão carregados de frutos. ( figos da índia?).Os ciprestes e oliveiras, árvores típicas da Itália, se debruçam, contorcem e sofrem, pelos muito que presenciaram. A estrada que nos conduz ao alto é íngreme, sinuosa e muito perfumada pelos ciprestes. Do alto, avistamos a cidade de Palermo, majestosamente instalada, no contorno da baía, e esparramada mais além, até onde alcança a vista.
Ao fundo , uma cordilheira de montanhas, azuis, arroxeadas, cinza-prata, cores emprestadas do mar e do céu.
Chegamos, lá em cima, a uma caverna, onde se encontraram os despojos de Santa Rosália ( Havia vivido aí como eremita), em 1624, e onde se construiu um altar à santa, padroeira da cidade de Palermo, também conhecida como Santuzza. Atrás de uma vitrina, santa Rosália está toda recoberta de ouro e ornada com jóias em ouro e prata. A soma de ex votos, flores e imagens, faz deste lugar uma estranha combinação de kitsch e devoção, o que também serviria para definir o gosto siciliano.
Nosso passeio se encerra nas barraquinhas do lado de fora, que vendem enorme variedade de badulaques e lembranças, desde imagens religiosas, aventais, cerâmicas “gregas e romanas”, soldados de madeira e cerâmica, bonecos sicilianos, colares, etc.

quarta-feira, 10 de março de 2010

Kaos- casa de Pirandello


Etna visto à distância


Caderno de Viagem


Relato de Viagem
Sicília- primeira parte


Setembro de 1995


Estamos há quase uma semana na Sicília, esta ilha imensa, um outro país de gente italiana, mas cuja terra ocre e restos históricos me faz pensar na Magna Grécia. O território, separado da Calábria pelo estreito de Messina, foi domínio de inúmeras civilizações: fenícios, gregos, romanos, ostrogodos, árabes, etc. Imagino a seqüência de antigos habitantes, seu legado cultural presente na arte e ruínas da arquitetura grandiosa e magnífica.
Em Siracusa há uma tumba provável de Arquimedes, conhecido matemático e físico, que, um dia, ao tomar banho de banheira, descobriu uma lei física, ("Todo corpo mergulhado num fluido sofre, por parte do fluido, uma força vertical para cima, cuja intensidade é igual ao peso do fluido deslocado pelo corpo.") e, ensandecido, nu, saiu pelas ruas anunciando sua descoberta, gritando “Eureka,” a quem quisesse ouvir.
No enorme teatro grego da cidade já foram apresentadas peças de Ésquilo, Sófocles e Eurídice. Platão também teve importante papel em Siracusa, tendo aí estado aos 40 anos de idade ( 388/7 AC), e depois aos 60 e 68 anos, empenhado em difundir sua filosofia. (“O saber, gnosis ,não é para Platão mera contemplação desligada da vida, mas converte-se em tekhne, arte, e em phronesis, reflexão sobre overdadeiro caminho, a decisão acertada, a meta autêntica,
os bens reais.” W. Jaeger. Paideia).
Quando venho à Europa fico diante da verdade inquestionável de que a cultura humana é a somatória reveladora do pensar e do fazer humanos.
Encantam-me os sicilianos, gente simples, que fala um italiano cantado, a língua entre os dentes, chiando, e, às vezes, absolutamente ininteligível para nós. As pessoas são simpáticas, disponíveis, capazes de nos acompanhar por quilômetros para elucidar uma dúvida quanto ao caminho. Percebo, porém, que são bravos, invocados, e não estão abertos a brincadeiras, é preciso cuidado.
Fizemos hoje um passeio pelo rio Ciane, por entre papiros que cobrem de verdes tufos as margens do rio, e muitas vezes deitam-se sobre as águas O barqueiro falava muito rápido e sussurrando os esses, enquanto olhávamos e tentávamos entender alguma coisa. Era um rapaz de olhos azuis muito claros, e arregalados, um rosto expressivo, com ar quase histriônico. O passeio não foi grande coisa, mas os papiros e o sicilianos estimularam minha imaginação.
Os jornais, ontem, anunciaram a morte da mulher de um mafioso importantíssimo da Sicília: Santapaola Minitti. Como estavam presos o marido e dois filhos seus, acredita-se que foi morta para que não entregasse o que sabia, tentando, assim, salvar a pele da família. Esta é a facção da Catânia, a outra facção é de Palermo. Os mafiosos ainda hoje estão impunes, somam-se os crimes de “silêncio” e vingança.
A Sicília é uma região abençoada por Deus, com tantas belezas naturais, que jamais me cansaria de andar por estas terras, com o mar sempre na vizinhança. Para nós, brasileiros, de país tropical, que conhecemos os verdes em todas as nuanças, comovem os ocres, sépias e dourados que colorem a paisagem estranha, as oliveiras prateadas sob intenso sol, e os ciprestes retorcidos, de verdes muito escuros. O céu não tem nuvens, cobalto ou celeste, é claro, e a luz que se esparrama sobre a terra é deslumbrante, inunda de alegria nossos corações. Finalmente, o mar mediterrâneo em toda a volta, como diria Pirandello, o “mar africano’, ora turquesa, ora azurro.
A maravilhosa culinária siciliana, que as nonas italianas em S. Paulo, vêm perpetuando, incríveis “antipasti”, “melanzane” em todas as receitas, o perfume das ervas deliciosas, as frutas generosas, os “dolci” , tudo acompanhado dos vinhos escuros, densos, aveludados, mortalmente saborosos. ( Corvo, Regalealli, Donna Fugatta).
Penso no filme de Visconti, “Il Gattopardo”, de 1963, de Giuseppe Lampedusa, nascido em Palermo, em Pirandello, escritor e dramaturgo, nascido em Agrigento, a humanidade deve muito aos sicilianos.
Visitamos também Agrigento, na costa sul da Sicilia, e local da antiga cidade grega Akragas., uma das mais importantes da Magna Grécia. É conhecida como a cidade dos templos, pela enorme quantidade de monumentos históricos, gregos e romanos, pelos museus com riquíssima coleção de peças arqueológicas.
Luigi Pirandello nasceu em Agrigento em 1867, e hoje existe um museu em sua casa, conhecida pelo nome de Kaos. Situada num planalto, ocre como a cor do solo, arrebatada pelo vento ciclópico, cercada por um jardim de flores exuberantes, e debruçada sobre o mar Mediterrâneo, “o mar africano”, é um sobrado de dois andares, de grande simplicidade e bom gosto, como imaginaríamos a casa de um grande homem. Ali encontramos a beleza em seus móveis sóbrios, de madeira escura, seus livros, cartas, anotações. Lindo o piso da casa, inteiro em cerâmica azul e branca, fresco, como pede o clima. Mais lindo do que tudo, a vista da janela, virada para o mar e para o céu, para o impressionante cipreste, torturado pelo tempo e pelo vento. Neste local exato, Pirandello pediu que o enterrassem. A voz de seus escritos paira no ar, a casa é cheia de seus pensamentos, sua vida permanece na minuciosa escolha dos objetos que um dia o cercaram.
A visita à casa de Pirandello, sozinha, teria valido a viagem à Sicília.

terça-feira, 2 de março de 2010





CRIAÇÃO



À noite crio e construo
Com a mente e os olhos voltados para as centelhas da escuridão
Formas aladas
Muros vazados
Terras bordadas, cravejadas
Das cores e do brilho fantasma
Que insistem em habitar a minha imaginação


De dia, como uma formiga,
Cumpro, obediente, o meu destino,
Molho os meus papéis com os azuis dos muitos céus
Armo esqueletos com cipós
Amarro e penduro as pedras do meu caminho
Brinco com o barro como menina
E fio os fios do chorão

sábado, 27 de fevereiro de 2010


pássaro morto

Pássaro Morto



Um pássaro negro, inchado ( fêmea, eu sei)
Em pleno domingo ensolarado
Surgiu morto a boiar
Na superfície das águas transparentes
Da piscina azul turquesa.


As penas, qual cocar,
Em torno a girar,
O canto interrompido,
Órfãos passarinhos em ninhos abandonados,
O medo das crianças em olhar transido.


Nada se disse
Mas, todos aqui, abismados,
A se perguntar
Quem de tal ato seria capaz?

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Sobre monotipias


De minha experiência com gravura posso dizer que me apaixonei, no início da profissão, pela xilogravura, pelo efeito dos veios da madeira, mas sobretudo por sua linguagem clara e definida. Mais recentemente, trabalhei alguns tipos de monotipia. Aquela feita com o papel colado sobre o vidro entintado, e o desenho feito diretamente, na hora. Experimentei também algumas técnicas à base de água e fiz experiências com a argila e engobes, tirando a cópia no papel. Gosto do resultado direto, puro, que preserva, de certa forma, a emoção que o gerou.
Mais recentemente experimentei uma nova técnica de monotipia a óleo. Usei lixas de madeira como matrizes para minhas pinturas com bastões oleosos, cada uma com suas imagens. Depois tirei cópias ( ou uma cópia) dessas imagens com a ajuda do calor.
O resultado conquistado é fascinante, pela invasão dos campos de cor, a mesclagem das cores, a linha que some, outra que surge. Mas, principalmente, não se perde a qualidade matérica da pintura ou a beleza do óleo.
A segunda cópia, quando se consegue, traz surpresas pelo quase desaparecimento da forma, a figura que se dissolve, como muitas vezes em nossa memória ou em nossas vidas.


Regina Dutra

Da série "Corações", em pastel


Da série "Corações" em monotipia a óleo


Em busca de mim mesma

MERGULHO


Percorro áreas de sombra
Mergulho em poço profundo
Lá, onde tudo é vicejante,
Verde e fresco

São águas misteriosas e mansas,
Ali estar imersa,
Perdida e só
Algas entrelaçando-se nas pernas
O corpo livre e solto
O espírito alerta
O ruído repetitivo e monótono
De insetos ocultos

Mais fundo, tão fundo,
Não se toca jamais o chão
Pouca luz, quase nenhuma,
Risca e corisca
Em linhas abstratas
A inesgotável fonte que me recebe
Não desejo emergir.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010




Uma palavra sobre a Cerâmica



No momento em que as mãos tocam o barro, a realidade do entorno se afasta, e. milagrosamente , entro em contato com as regiões densas e ocultas de mim mesma. Lá se encontra meu ouro, aquele que só se desvenda através das frestas, ou no lusco fusco da indefinição.
O processo da criação da forma é intuitivo e misterioso. Sua realização depende da lucidez e do conhecimento.
Todas as etapas da realização da cerâmica são envolventes e surpreendentes. A construção da peça, as queimas em oxidação ou redução e seus resultados inesperados e maravilhosos, além de todas as dificuldades do começo ao fim do processo, tornam a “Cerâmica” uma das mais interessantes e completas formas de expressão.
Optei desde cedo pela queima em alta temperatura, pela pesquisa exaustiva de esmaltes, pelo uso apropriado da expressividade peculiar de cada barro.
Gosto do meu trabalho, ele é parte do meu cotidiano, e por suas características de intensa vivência, tem trazido ao meu atelier amigos, familiares e muitas novas relações, que enriquecem minha vida.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010



Árvores



Erguem os braços as gigantescas árvores
Em infinita espera,
Em súplicas por piedade
Galhos e ramas,
Seus tortuosos caminhos de alcançar os céus


Tombarão um dia, solenes,
E graves,
Mas como vidas humanas,
Em alongadas sombras ,
Poderão se dessipar
E se perder,
Transformando-se na matéria triste de seu próprio solo
ÁRVORE


Quisera eu
Ser árvore frondosa
Estender meus braços
Para todos os lados
Sorver de um gole o ar verde
E me espalhar no ar
Deixando no chão
As sombras do pensamentro
Das maravilhas e dos sonhos
Que, se pudesse, inventaria
Para aqueles que sob mim passassem

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

restos de memória


No Carro



Da janela do “Caprice”, um super car of the year, vejo passar a belíssima vegetação outonal, de clima temperado. É um Colorado colorido de verdes, amarelos, sépias, laranjas, vermelhos, fúccias e dourados. Everything is so beautiful, and so neat.
Tenho a impressão de estar no cinema, tudo passa rápido, e parece tão pouco verdadeiro, impalpável. Quero parar o carro e não posso, porque não encontro lugar para estacionar e descer. Imagino o cheiro dos pinheiros e araucárias, que não consigo sentir diretamente. As setas indicando lugares e rios, e córregos e lagos, passam rapidamente, mas não conseguimos acessar.
Fica faltando pôr os pés na terra ou as mãos na água, e resta a sensação de ver toda a beleza através do “frame “, que é nossa janela.






Primeiras impressões- viagem ao Colorado 1992
Aventura de ser só


Lembro-me da menina, quase moça, a outra. Ela subiu pela primeira vez num avião aos quinze anos, deixou os irmãos e os pais, deixou a casa em que morava e que era seu porto seguro, e, com o coração na boca, voou pelos céus da liberdade. Atravessou o oceano mergulhada em pensamentos, excitada e temerosa do que estava por vir. E já no avião sentiu também muitas saudades, da vida que estava deixando para trás.
Chegou nesta cidade eletrizante, lotada de carros e gente, as luzes psicodélicas do néon, ( Mondrian-“ Broadway Boogie Woogie”, é o que me vem à cabeça).
Caminhando pelas ruas, no meio de tantas pessoas, ficou convicta de que estava só, encheu de coragem o peito e foi em frente.


Trinta e dois anos depois, em Nova Iorque, caminhando pelo emaranhado de ruas, examinando as vitrinas, observando as pessoas e pensando na sua vida de feliz casamento e três filhos moços, teve, mais uma vez, a consciência da solidão, como inerente ao ser humano, ainda que com tantos laços e afetos profundos. Sentiu-se, também, mais uma vez, livre como a menina adolescente





Chuva


Da terra o perfume silvestre
Folhas de temporais enxarcadas
Lírios do vale pisoteados
A exalar doces feridas


Altivos eucaliptos molhados
Derramam generosas gotas de prata,
Oxigenam, purificam
Novos ares poluídos


Nuvens prenhes e inchadas
Ao chorar tantas mágoas,
Lavam as flores, as dores,
Feritlizam corpos estéreis.

domingo, 7 de fevereiro de 2010


Sobre Amigos


Estar entre amigos, é estar bem, é sentir-se à vontade, sem a preocupação da auto censura . É trocar idéias, contar experiências, ouvir com o coração o que outro precisa dizer, porque sofreu ou porque está só. É estar desarmado e vulnerável, porque são seus amigos que estão com você.
A percepção de outro e sensibilidade devem estar sempre à flor da pele, mas sobretudo o sentimento de empatia e solidariedade. E, se por um descuido´, você sente que errou, ou se distraiu num momento importante, imediatamente deve se desculpar e lavar com águas puras o incidente. Perdoar sempre, ser generoso e magnânimo, Abrir sua casa e seu peito, desejar profundamente a visita do amigo.
Se temos alguns pouquíssimos amigos, é porque conhecemos tudo isso, e quando os temos, tudo devemos fazer para não perder.

sábado, 6 de fevereiro de 2010



Sobre a ASMA e outras coisas 1


Sou asmática há muitos anos, desde os cinco anos de idade, quando tive a primeira crise de falta de ar após a retirada das amígdalas.
Perdi a conta das noites insones, de ficar sentada na beira da cama procurando lá dentro algo que me acalmasse, até que a respiração voltasse ao normal.
O cheiro do éter usado na amigdalectomia ficou impregnado na minha imaginação durante longo período, e eu atribuía a ele a falta de ar.
Quando menina, mamãe me levou a todos os tipos de médicos, lembro-me muito bem que em desespero de causa freqüentamos muito o Dr Resende, que era um médico homeopata, cujo consultório ficava numa ruazinha atrás da praça da República. Vivia tão cheio de gente, que não havia consulta com hora marcada. As pessoas chegavam desde o período da manhã e iam formando uma fila na porta do consultório, ou sentavam-se nas escadas. Eu reclamava muito da espera e mamãe dizia que eu precisava aprender a ser paciente. A verdade é que depois de dois anos de tratamento, nada, absolutamente nada aconteceu que se assemelhasse a uma melhora.
Ainda quando menina usei, durante certo período, uma pulseira de cobre no braço porque diziam que era algo miraculoso ( Não sei, até hoje, se era um tratamento esotérico ou qualquer outra coisa). A verdade é que não funcionou.
Mais tarde, já mocinha, lembro-me de um médico alergista, que tinha um consultório com muitos arquivos e gavetas com milhares de lâminas, e que tinha os cabelos revoltos e o olhar distante, parecendo um pouco alienado. Fez em mim mais de 20 testes com alergenos, e quando veio o resultado determinando que tipo de alimentos ou elementos de contato me faziam mal, eu disse, muito feliz! Mas que ótimo, agora basta evitar essas coisas e eu não terei mais asma. E ele retrucou: Não é bem assim, você é um tipo raro de pessoa muito alérgica, e se você se privar dessas coisas, certamente seu organismo vai criar novas alergias a outras tantas. Saí de lá com a moral no pé.
Que fazer?
A verdade é que passei um ano inteirinho sem asma. Foi quando morei no sul da Califórnia. Era quente ( mas não muito), e não tinha qualquer umidade.
Na maturidade sofri muito com essa falta de ar. Mas felizmente apareceram os sprays de corticóide inalatório, que equilibraram razoavelmente minha asma.
Nessa jornada pedregosa, conto muito com o apoio do meu marido, que é m´dico e sempre cuidou de mim , e com o bom senso e competência do meu pneumologista, Dr Helio Romaldini, que há muitos anos me trata com dedicação e afeto, mas que tem, sobretudo, a grande qualidade de saber ouvir e distinguir, identificar cada paciente, consciente de que um é sempre diferente do outro, ainda que com a mesma doença.

ASMA 1

O tórax intumescido e machucado
Cresce até o seu mais absoluto limite
Dentre frágeis ossos, costelas de dama
Se avoluma um não sei quê,
Um não sei como, ou porquê.
Quanto mais ar meu peito guarda
Menos me resta para viver.



ASMA 2

Inimigo sem face
Asma inclemente
Insidiosa, latente
Penetra, traiçoeira pelas costas
Comprime o peito,
Aperta a garganta
Arrebenta as entranhas

Asma das noites insones
Das vigílias cruéis
Intercortadas de (falta de) ar
Que entra e não sai
Asma que sequer permite
Suspirar, rir ou chorar.

Foi lentamente tomando conta
Como água que se infiltrou
Pelos meus cantos e recantos
Um pensamento a torna água viva
Uma lembrança, poderosa torrente represada
Que fazer para escoá-la?

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010


Pintura II


Um caminho de outono
Iluminado
Dos terras, ocres e dourados
Das folhas a se estender
A minha espera
Em chão sólido e preparado
Pelas cruzes da vida
Do pai e dos filhos
O coração completo
O olhar voltado para o fundo
E a certeza do passo
Sem pressa.



Pintura III


No meu chão
Sem atenção passaram
E a terra virou sangue e seiva
Rosas, fúcsias, vermelhas
As buganvíleas em flor
Deitaram-se
E meu leito bordaram





PINTURA


Revelou-se sobre o dourado
Um coração distorcido e desfigurado
De tanto sangrar se tornara
Chão de crateras
Negro e ressecado
Fora-se para sempre a seiva e o sangue
Em betume e pedra se transformara
Soube-se , súbito, que de tanto por aí vagar
Finalmente chegara ao seu lugar
E a moldura de ouro,
Qual coroa,
Fez da dor, resplendor.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010





Criação e processo de trabalho


No processo do meu trabalho a Natureza tem papel fundamental, quer como objeto de observação, quer como fonte de recursos que constituirão a própria obra.
Não penso ou olho para a Natureza no sentido tradicionalmente romântico ou estetizante (à procura do “ belo”), mas no sentido paradigmático, pois através dela reconheço a própria vida, a estrutura de todas as coisas, a passagem do tempo.
Há tempos venho entendendo a pintura como registro das etapas ou momentos da vida, e que uma vez realizadas, permanecem como trechos da memória significativa. Gosto de pensar no trabalho como os fragmentos de memória, as indicações ou referências que nos acompanham das experiências vividas. Porisso, interessam-me o solo e a passagem do tempo sobre ele: as ondulações formadas pelo vento ou pelo movimento das ondas nas areias da praia, a precariedade dos desenhos assim formados, a permanente mudança. Observo as folhas e os galhos que tombam das árvores, mudam de cor e estrutura e se incorporam à terra dando início a um novo ciclo. No trabalho valorizo especialmente as texturas, escarifico as superfícies dos objetos e pinturas porque acredito nas cicatrizes e marcas deixadas pelo tempo.
Se escolho como tema a montanha, ou o rio, ou a árvore, o que desejo representar é a idéia da montanha, do rio ou da árvore, algo que existe apenas dentro de mim. Por essa razão, não consigo definir uma iconografia de conhecimento comum e não gosto de identificar a pintura ou relacioná-la com temas ou idéias. A pintura é cor, luz, textura e matéria, assim como o trabalho tridimensional é a presença da estrutura e da construção, organização de materiais e execução de uma idéia.
O acaso participa do meu trabalho porque uso recursos naturais e os aproveito à medida em que encontro algo significativo. Embora ao iniciar uma obra eu tenha um projeto norteador, ocorrem situações em que o inesperado modifica a direção ao longo do processo de execução do trabalho
Mais especificamente, venho utilizando ferro de construção, pedaços de madeira, pedras roladas ou brutas nas obras tridimensionais, e mais recentemente tenho também executado trabalhos em cerâmica. Nas pinturas uso o pó de mármore, pigmentos que se inserem dentro da massa e lembram o procedimento do afresco, pois a cor é inserida e não superposta à tela. Trabalho também com o recurso eventual da colagem.



Regina Dutra ( meados de 1990 )

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010





Na postagem de ontem ficaram faltando as fotos, que são elucidativas.
O muro coberto pelo verde do bambu, algumas fotos do nosso exuberante jardim.

Casulo


Com o coração pulsante,
Enrolado nos fios da memória,
Nas asas da imaginação
Adormece o artista.

Em negro veludo
E ritmado silêncio,
Por noites sem luas
E dias sem fim
Sonha os sonhos da transformação

Até que o vento balance
A casca tão fina
E a luz penetre
Sua transparente crisálida,
Permitindo que se rompa
E dê início à vida.

Surge a obra.
E com alma, olhos e mãos se completa,
Em sua singularidade e vida própria.


terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

É proibido plantar?

2 de fevereiro de 2010
É proibido plantar!

Ontem de manhã meu funcionário Pedro, que está conosco há 11 anos, estava na calçada de nossa casa, explicando ao jardineiro como fazer a poda dos bambus, que formam uma moldura verde em toda a volta da casa. Foram plantados há mais de 20 anos num canteiro estreito na calçada. Levaram muitos anos e muito cuidado para atingirem a altura do muro e são podados com regularidade mensal, mas no verão, especialmente o deste ano, cresceram muito por causa das chuvas, que foram extremamente generosas. Estamos chegando de férias e chamamos o jardineiro para executar suas tarefas habituais, além de cortar galhos e folhas, fazer a limpeza das imundícies que nossos educados concidadãos gostam de jogar sob as plantas, como se fosse o lixo do bairro .É evidente que esse tipo de limpeza precisa ser feito com muito mais constância, duas ou três vezes por semana, coisa que as moças que trabalham aqui fazem.
O extraordinário foi o que aconteceu . Quando ele dava instruções ao jardineiro, passa uma senhora, com um cachorrinho na coleira e diz a ele: “ Avise sua patroa que já estou passando um papel pelo bairro , angariando assinaturas contra a atitude dela de manter essas plantas na calçada, que impedem as pessoas de transitar. Diga que eu exijo que ela arranque tudo isso aí, que não serve para nada, só para estorvar!. Imediatamente, ele defendeu: “ Mas não está vendo, minha senhora, que estamos fazendo a poda dos bambus? E ela: “ Podar não adianta, é necessário arrancar. Aliás, diga para ela também : quem ela pensa que é, a dona do bairro? Na minha opinião é alguém que não merece morar neste lugar!
Meu funcionário é do bem e nem respondeu, não quis me chamar para que eu não me aborrecesse muito. Mais tarde me contou o incidente.
Temos , meu marido e eu uma casa de mais de 600 m2 de terreno, anexada a uma propriedade que foi de meus pais e hoje é patrimônio meu e de meus irmãos, de quase 2000 m2. Meus pais chegaram a este bairro de S. Paulo, Moema, há 49 anos atrás e compraram inicialmente um terreno de 1400 m2 , mais tarde adquiriram a casa do vizinho e eu e meu marido compramos a propriedade ao lado da casa deles há 35 anos. Nossa família sempre teve enorme respeito pela Natureza, meus pais jamais tiraram uma árvore sequer do nosso terreno, ao contrário. Assim que se estabeleceram, compraram muitas mudas de árvores plantaram em seu terreno. Hoje temos amoreira, mexeriqueira,nespereira, goiabeira, pitangueira, arvore de fruta japonesa, jabuticabeira, abacateiro, e muitas espécies ornamentais. Mamãe, até falecer, aos 89 anos, há dois anos atrás, vivia no jardim, molhando suas plantinhas, tirando os matos, adubando, e orgulhosamente admirando sua obra.
Quanto a mim, todo o cantinho de terra que eu encontro, planto alguma coisinha, trago mudas de viagens que faço por aí afora, adoro olhar para todo o meu verde, alegra-me a chegada de uma flor, e os pássaros do bairro moram, por assim dizer, no nosso jardim.
Esta senhora que por aqui ontem passou, e que deixa as fezes de seu lindo cachorrinho em nossas calçadas ou as joga embaladas em saquinhos plásticos , por cima do muro , para dentro de nosso jardim , nem atina para o fato de que o bom ar que ela respira neste simpático bairro vem do trabalho e empenho de pessoas que respeitam a Natureza e a tratam com todo o carinho, porque sabem que dela dependem.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

POESIA E IMAGEM




AQUARELAS


Vêem as aquarelas
Das nossas gavetas secretas;
Das alegrias do coração,
De céus estrelados,
Do luar que nos habita.


Nas aquarelas,
Como na vida,
Nada se perde.
Camadas de risos,
Os véus de ilusões.
O desmaio ocre sobre a forma esboçada,
Sombrios índigos
Entremeados dos medos e sustos,
Os pontos e as linhas do pincel solto,
Registros de luzes do passado.


Muitas águas derramadas,
Umas sobre as outras,
As verdades claras e transparentes.
Amargos borrões que se alastram,
E depositam a delicadeza sobre as fibras,
Somam-se à força do traço,
Das convicções e metas.


Seco o papel,
Acabada a cartografia,
Da vida, o mistério
Persiste,
A ser desvendado.